Curva de Juros Futuros expõe dilema entre alívio inflacionário e escalada do risco fiscal: como navegar a renda fixa diante do “twist” no DI?
O fechamento dos contratos DI hoje escancarou uma tensão estratégica: a queda dos juros curtos, impulsionada por um IPCA benigno, contrasta com a resiliência dos vértices longos diante do choque fiscal. Descubra como a forma da curva pode orientar decisões de renda fixa num cenário que desafia o próprio Banco Central.
Quando penso em dias como o de hoje, lembro de uma lição que aprendi cedo na sala de operações: nem sempre o mercado “concorda” consigo mesmo. O pregão fecha, mas a mensagem é dúbia, quase enigmática. Nesta quinta-feira, os contratos futuros de DI exibiram um movimento que me fez voltar àqueles dias de tela preta e telefone vermelho – quando uma notícia positiva parecia não bastar para acalmar todos os temores, e a curva de juros, como um sismógrafo, revelava rachaduras sob a superfície.
O fato nu e cru: com o IPCA de setembro subindo 0,48% — uma fração abaixo do esperado pelo consenso —, os vértices curtos e intermediários da curva de DI despencaram. O contrato de out/2026 fechou em 14,305% (-0,35%), out/2027 em 13,515% (-0,63%), e até out/2028 cedeu a 13,345% (-0,56%). Só que, olhando para os vencimentos mais longos, a música mudou: out/2029 caiu apenas 0,52%, e o contrato para 2035, segundo relatos, praticamente não se mexeu. Os vértices curtos refletiram um alívio quase imediato com o dado de inflação, enquanto os longos, em vez de embarcarem no otimismo, pisaram no freio. E não foi só: enquanto os juros caíam, o dólar subia forte (+0,58%), escancarando uma divergência de prioridades – a curva de juros enxergando inflação em queda, o câmbio mirando o buraco fiscal aberto pela derrota da MP 1.303 na Câmara.
O que está por trás desse quadro é o embate entre o dado benigno de inflação e o baque fiscal. O IPCA não só veio abaixo da expectativa como trouxe uma composição amigável — principalmente pela desaceleração da inflação de serviços, historicamente o calcanhar de Aquiles para a política monetária. Isso reforçou a percepção de desinflação em curso, algo que naturalmente pressiona para baixo os juros futuros, sobretudo nos contratos que refletem as próximas reuniões do Copom. Mas o alívio foi parcial: a rejeição da MP 1.303 escancarou um rombo fiscal estimado em mais de R$ 46 bilhões até 2026, minando a confiança na sustentabilidade das contas públicas. Essa incerteza se espraiou pelos vértices longos, onde o prêmio de risco exigido pelos investidores segue elevado.
Na leitura técnica, a inclinação da curva trouxe nuances valiosas. No curto prazo, a diferença entre out/2026 e nov/2025 ampliou-se em 5 pontos-base, aprofundando a inclinação negativa. Esse “steepening” sugere que o mercado vê espaço crescente para cortes na Selic à frente, confiando que o ciclo de desinflação dará ao BC margem para afrouxar a política monetária, pelo menos no horizonte imediato. Já na parte intermediária, a inclinação também se acentuou (spread foi de -75,50bps para -79,00bps), indicando que a expectativa de afrouxamento monetário se estende um pouco mais, mas com ritmo possivelmente mais lento conforme os riscos se acumulam. O longo prazo, porém, apresentou um leve steepening positivo: o spread entre out/2029 e out/2028 aumentou de +9,00bps para +10,50bps — um sinal de que o mercado exige prêmio adicional para carregar risco fiscal e inflação projetada para além do horizonte de dois ciclos de governo.
O resultado é uma curva de juros que exibe um “twist” típico de cenários de incerteza mista: queda acentuada nas taxas curtas e intermediárias, mas resistência dos vértices longos. Essa forma não só revela a divisão entre otimismo inflacionário e pessimismo fiscal, como também sinaliza que o mercado, no fundo, não crê na convergência automática da inflação se o risco fiscal continuar a se deteriorar. A divergência reforçada pelo comportamento do câmbio — ignorando o IPCA e reagindo ao fiscal — só amplia essa mensagem.
O movimento encenado hoje criou um dilema para o Banco Central. Se, por um lado, o alívio pontual da inflação oferece argumentos para flexibilizar a política monetária, por outro, a deterioração fiscal impõe um freio que pode obrigar o Copom a manter (ou até endurecer) o tom cauteloso nas próximas decisões. O mercado, ao aprofundar a inclinação nos trechos curtos e travar os longos, parece precificar um cenário condicional: cortes de juros só perduram se o risco fiscal for contido. Caso contrário, a pressão cambial pode contaminar as expectativas de inflação, levando o BC a abortar o ciclo de cortes prematuramente – ou a calibrar um ritmo mais lento do que o que a inflação corrente sugeriria. Se a piora fiscal persistir, poderíamos ver o “twist” da curva se acentuar ainda mais, com os vértices longos subindo e os curtos resistindo à queda. Por outro lado, uma sinalização de ajuste fiscal crível pode destravar espaço para quedas mais homogêneas ao longo da curva.
Diante desse cenário, vejo a dinâmica da inclinação como o principal farol para a alocação em renda fixa. O “twist” de hoje, com steepening nos extremos, sugere uma abordagem de “barra” (barbell) para navegar a incerteza: concentrar o grosso da posição em pós-fixados de alta liquidez (Tesouro Selic, CDB DI) para capturar os juros curtos ainda elevados e a eventual continuidade da remuneração gorda enquanto o BC não dá sinais inequívocos de cortes agressivos. Simultaneamente, alocar uma fatia menor em prefixados ou títulos indexados à inflação de vencimento muito longo (Tesouro Prefixado 2035, Tesouro IPCA+ 2035/2045), que hoje oferecem prêmios de risco consideráveis — justamente porque a curva exige proteção contra o risco fiscal e a incerteza de médio/longo prazo. A beleza dessa estratégia está em capturar o melhor dos dois mundos: liquidez e flexibilidade nos curtos, prêmio de risco potencial nos longos, sem depender de uma única narrativa para o cenário adiante. Vale ressaltar que o comportamento divergente entre juros e câmbio reforça a tese de diversificação — um fator de confirmação importante para quem busca robustez na carteira.
Se tem algo que aprendi após muitos ciclos de aperto e afrouxamento é que, em cenários bifurcados como o de hoje, a curva de juros se torna quase um diário íntimo do mercado, revelando ansiedades e esperanças em cada trecho. O investidor atento, em vez de buscar respostas prontas, pode se perguntar: “O que a curva de hoje está tentando me dizer sobre o amanhã?” No fundo, a arte de navegar a renda fixa está mais em ouvir essas entrelinhas do que em apostar cegamente em previsões. Afinal, a dúvida é o berço da estratégia — e é nela que se forjam as decisões mais inteligentes.
Compartilhe:



